(Publicado no site da agência Carta Maior, na seqüência de cartas endereças “Ao arqueólogo do futuro”.)
Senhor arqueólogo, foi muito difícil encontrar
um lugar a partir do qual pudesse me dirigir ao senhor. Infinitas são
as perspectivas que nosso tempo nos permite, desintegrado que está por
tantas razões que não caberiam nesta cartinha. Então, resolvi falar de
um lugar comum. O lugar de um homem.
Todo homem é comum mesmo não sendo. O não ser comum do homem parece
estar em sua forma própria de ser comum. Em seu jeito singular de
sofrer, brincar, envelhecer. Em sua necessidade de construir,
simbolizar, criar. Um homem não deixa de ser comum mesmo entre letras,
livros, máquinas, sistemas, signos. Um homem é sempre uma trajetória
que declina. Que ascende, mas que declina. O comum do homem é sua
aparição relâmpago, o seu constituir e o seu perecer. O comum do homem é
sua necessidade de dizer, manifestar, inscrever, perpetuar. Ao mesmo
tempo sua impossibilidade de permanecer. Todo homem constitui-se na
tensão entre viver e morrer, entre dizer e calar, entre subir e descer.
Mas, por razões extensas e difíceis, a história humana parece ter se
ordenado em torno da vontade de não ser.
Não envelhecer, não sentir dor, não se cansar, não se aborrecer. O homem parece
envergonhar-se de ser: pequeno, sensível, mortal, humano. E organiza-se
em torno de um ideal de homem, sem corpo. O homem envergonha-se de seu
corpo. Não de seu sexo ou de seu prazer, mas de suas vísceras, de seus
excrementos, de seus sons e odores, de seu processo bioquímico,
fisiológico, orgânico. O homem envergonha-se de morrer e vai
acuando-se, escondendo-se, perdendo-se em torno de uma idéia, de uma
imagem. Em sua luta por não ser comum, o homem tornou-se nenhum. Todo
homem virou nenhum. Nenhum homem na rua, em casa. Nenhum homem na cama.
Nenhum homem, mas um nome. O homem se reduziu a um nome. Não um nome
próprio, mas um substantivo.
Mas um homem é sempre maior que um nome mesmo que não queira. E uma
outra história foi sendo tecida por trás desse desejo de não ser.
Enquanto construía seus mecanismos de não corpo, enquanto se constituía
como idéia, pensamento, imagem, a humanidade proliferava em seus
excessos contidos, em suas angústias não canalizadas, em suas paixões
não vividas, em seus pavores maquiados. E um corpo invertido, nascido
de tantos corpos abafados, foi constituindo-se socialmente, foi
ganhando força e vida. Uma vida invertida, mas uma vida.
Tóxica, ela foi se alastrando pelas casas, pelas ruas, em forma de
morte. A morte negada, as perdas e dores abafadas, saíram às ruas
reivindicando seu espaço. O que antes esteve circunscrito aos campos de
batalha, às margens, aos guetos, agora ganha as escolas, os metrôs,
os restaurantes, as praias. Não há mais lugar seguro, carros
blindados, condomínios fechados. Agora todos somos igualmente
passíveis.
Vivemos a democratização da violência. Vivemos o predomínio daquilo que foi por tanto tempo obstinadamente negado.
A violência trouxe-nos de volta a urgência pelo corpo, pela vida, pelo
tempo. E apartou-nos de nosso sonho de perenidade, de futuro, de
verdade. Agora, todos estamos órfãos de nosso medíocre projeto de
felicidade. Agora é preciso viver, temos urgência do instante,
precisamos do corpo, mesmo gordo, magro, estrábico. E aqui, de meu
lugar comum, de mulher comum, enquanto lavo a louça do café olhando a
cor insistente da tarde que passa, me pergunto por quê? Por que não os
dias nublados, as dores do parto, os serviços domésticos? Por que não o
escuro, o delírio, a solidão? As lágrimas, os espinhos no pé, as
quedas?
Dizem que o homem, como conhecemos, tende a desaparecer. É possível
que uma espécie mais forte possa surgir, uma espécie capaz de um dia
divertir-se com este nosso hábito demasiadamente humano de negar o
inexorável, de controlar o incontrolável, e, não conseguindo, de
esconder-se em cápsulas virtuais, em psicotrópicos de ultima geração,
em imagens. Um homem que talvez tenha sempre existido pode começar
enfim a surgir. Um homem capaz de viver a dor e a alegria de ser
mortal, singular, sozinho, comum. Um homem capaz de gritar sua dor
impossível. Um homem capaz de cantar. Um homem capaz de viver.