O poço do Dacó



Pelas bandas do Vilarejo Dacó haviam duas mulheres recém-casadas. Moravam em fazendas vizinhas e compartilhavam o mesmo poço de água. Tanto para lavação de roupa quanto para buscar água para consumo. 


Isso lá pelos idos de 1930.


Acontece que as duas ao invés de serem amigas, as infelizes das mulheres resolveram implicar uma com a outra. 


Se essa briga houvesse ficado só entre elas, tudo bem. Provavelmente esse texto não existiria. Mas, resolveram incluir o vovô José Francisco no meio da confusão.


Vou explicar. Vovô era o representante da lei na cidade. A cidade era muito pequena e não tinham como (nem necessidade de)  manter uma delegacia lá. Então nomearam o vovô - que era o mais estudado da região - para manter a "ordem na casa". Se alguma coisa mais grave acontecesse, isso deveria ser comunicado à delegacia da cidade vizinha que era a de Santa Bárbara para que o delegado viesse á cidade para resolver.


Um dia, uma das mulheres estava cansada de tanto brigar com a outra que mandou chamar o vovô lá. 


O problema era, quando a uma ia buscar água para comida e a outra estava lavando roupa, ela não deixava a uma pegar água. Falando que ia atrasar ela com os afazeres de casa. Que se ela quisesse, ela voltasse mais tarde. Resultado, a comida da uma sempre atrasava. 


E sempre acontecia o contrário também. Quando a outra chegava para buscar água e a uma estava lá lavando roupa, ela não deixava a outra pegar água. 


O vovô foi chamado lá duas vezes por elas. Uma vez por cada uma. A distância até lá era grande e ele geralmente gastava um dia inteiro entre ir, resolver e voltar. 


E com isso, as coisas dele na fazenda ficavam paradas. 


Na segunda vez que ele foi lá, ele avisou que não era para chamar ele mais não. Que elas precisavam colaborar mutuamente. Se uma chegasse e a outra estivesse lá, a primeira deveria dar espaço para que ela pudesse pegar a água para cozinhar e outros afazeres da casa.


Pois bem. Um mês chega na fazenda do vovô, o menino de uma das senhoras falando que a mãe dele pediu para chamá-lo na casa deles.


Vovô - já muito nervoso com a situação - disse que não iria. 


No mesmo dia, ele escreveu uma carta ao delegado de Santa Bárbara relatando tudo o que tinha acontecido. Pediu a ele que convocasse as duas para comparecer à delegacia para ter uma conversa séria e definitiva. Sugeriu a ele também o que fazer.


Dias depois chegou o Oficial de Justiça na casa das jovens senhoras e entregou a cada uma delas uma carta intimando-as a comparecer à delegacia no dia marcado.


Foi uma choradeira só.


- A delegacia é muito longe, Dotô!


- Não tenho com quem deixar meus filhos pequenos, Dotô!


- Quem vai fazer a comida do marido e dos peões dele, Dotô?


E o Oficial de Justiça foi bem claro: “Quem não comparecer no dia marcado no papel, ele voltaria no dia seguinte da convocação, mas com os soldados porque iria levá-las presa.”


No dia marcado para ir à delegacia, as duas acordaram e saíram de madrugada para poder chegar no horário certo. 


Os maridos não puderam ir pra lida neste dia porque precisavam cuidar das crianças. Obvio que eles não estavam nem um pouco felizes com toda essa história. Já não bastava ter de cuidar de colocar comida na mesa, ainda tinham que aguentar briguinha de mulher. Estavam pensando até em devolvê-las para seus pais.


As duas chegaram no horário marcado. Sentaram- se uma ao lado da outra – os dois únicos lugares disponíveis - e nem para o lado olhavam.


Ficaram ali sentadas um par de horas sem que ninguém se desse conta da presença delas tamanha era a confusão na delegacia. 


Soldado chegando com bêbado que mexeu com as outras pessoas. Outro com prostitutas que estavam brigando na rua. Outro ainda com um ladrão de galinha. 


Até que o delegado notou a presença delas e perguntou gritando:


- O que essas duas senhoras estão fazendo aqui?


Um soldado respondeu igualmente gritado lá do outro canto:


- Estas são as senhoras que o Senhor José Francisco pediu para o Senhor conversar. Briga por causa do poço d'água.


O delegado apertou bem.os olhos e quase sussurrando falou com elas:


- É devera que vocês vieram aqui atrapalhar meu serviço por causa de um porcaria de bica d'água? Não estou com tempo agora de lidar com vocês. Soldado!  Coloque as duas numa cela que mais tarde eu vejo o que faço com elas.
 

Choraram. E foi muito. 


Ficaram lá até por volta das 17 horas quando o delegado pediu para trazê-las de novo.


Sentou com elas - que a essa altura já estavam muito abaladas - e começou a conversa nada educada. 


- Vocês deveriam ter vergonha de uma coisa destas. Duas Senhoras distintas, casadas com homens honrados e mães de família agindo como rameras... Como se fossem uma qualquer de rua. Vocês deveriam ter vergonha!

E continuou no mesmo tom:


- Olhem para estas pessoas aqui na delegacia. Vocês estão se colocando no mesmo nível delas. É assim que vocês querem que seus filhos vejam vocês?


Isso seguiu por mais de uma hora até que por fim ele as liberou.


- Saiam daqui. E, pelo amor de Deus, não quero receber mais reclamação de vocês. Não chamem o Senhor José Francisco para resolver problema de vocês. Só chamem ele em caso de morte de uma das duas ou das duas. Vão embora e não voltem mais aqui!


As duas, mais que depressa, saíram correndo da delegacia. 


Quando chegaram lá fora é que se deram de que já estava escurecendo. E a distância da volta pra casa era grande. Ficaram sem saber se dormiam na praça – não tinham parente nenhuma na cidade - ou voltavam. Decidiram voltar. 


Pegaram o caminho da estrada de terra. As duas lado a lado e caladas. A noite avançava e a lua não aparecia. 

Uma escuridão mais dura que a solidão.


O medo veio inteiro. No corpo e na alma. 


Medo de bicho. Medo de andarilho. Medo de gente ruim. Medo até de pensar.


Para tentar distrair a cabeça do pânico, começaram a conversar. Tímidas de início, mas a medida que a distância até às suas casa diminuía, a distância entre elas fazia o mesmo.


Chegaram em salvação às suas casas. 


Nunca mais tiveram problemas entre si.


Viraram inclusive comadres. Uma batizou o filhinho da outra. Comadres de medo. 




Vovô tinha maneiras peculiares de resolver as coisas. Mas, era uma pessoa que nunca tinha problema.



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